Plano previa inclusive o envio de uma proposta de emenda constitucional ao Congresso. Ministra do Meio Ambiente afirma que projeto tratava apenas de isenção tributária

Porto Velho, Rondônia -
Se, hoje, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, critica e define como um retrocesso o que propõe o texto da chamada PEC das Praias, há dez anos a então candidata à presidência da República apresentava em seu programa de governo para as eleições de 2014 um plano bem parecido com o que prevê a proposta em pauta. O texto sob a relatoria do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) virou cerne de uma polêmica desde que voltou a ser discutido no Congresso, há cerca de uma semana.

Assim como na proposta que é apreciada no Senado, o plano de Marina de dez anos atrás também defendia retirar da União o direito sobre os chamados terrenos de marinha, que são áreas localizadas na costa brasileira numa faixa de 33 metros a partir do litoral, como registrou reportagem do GLOBO na ocasião. O programa previa, inclusive, o envio de uma proposta de emenda constitucional (PEC) ao Congresso para, além disso, acabar com taxas e impostos que incidem sob essas áreas — o foro e o laudêmio.

Procurada pelo GLOBO nesta quarta-feira (5), a ministra Marina Silva negou em nota que sua proposta previa a transferência de posse e enfatizou que tratava apenas sobre isenção tributária nas áreas de marinha.

"A proposta da chapa referia-se à criação de isenção tributária, sem tratar da transferência do domínio público da União sobre os imóveis. No que se refere à PEC 3/2022, a ministra posiciona-se de forma contrária e enfatiza a necessidade de preservar a função ambiental dessas áreas, especialmente diante da intensificação da mudança do clima. Destaca também que áreas ambientalmente frágeis e vulneráveis requerem proteção ainda maior", afirmou.

Em 2014, ela argumentava que os tributos eram "anacrônicos" e que era preciso melhorar o acesso pleno à casa própria, corrigindo o que seu plano definia como "distorção inibidora da regularização da propriedade imobiliária urbana".

“A legislação que regula os tributos incidentes sobre essas áreas é anacrônica e deve ser revogada. A exigência de pagamento de laudêmio nas transferências dos terrenos definidos como de marinha impõe ônus adicional à aquisição de imóveis pela população, o que dificulta o acesso à casa própria”, dizia o programa de Marina, há dez anos.

Oposição de Dilma

À época, o governo Dilma Rousseff (PT) se manifestou contrário à ideia. Em nota enviada ao GLOBO, para a matéria publicada em setembro de 2014, a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), órgão ligado ao Ministério do Planejamento, disse que "o fundamento do instituto dos terrenos de marinha é a preservação do interesse público frente aos da especulação imobiliária".

Também nesta quarta, em agenda por ocasião do Dia do Meio Ambiente, em Brasília, Marina Silva criticou a PEC das Praias e disse que "homem legisla, mas a natureza não assimila". Citou impactos ambientais que podem partir da aprovação da medida e afirmou que o Congresso Nacional tem uma "dinâmica própria".

— Tem uma dinâmica própria do Congresso. O Congresso apresenta suas propostas, suas ideias, mas também têm uma dinâmica própria de uma sociedade que está sentindo na pele a pedagogia da dor, do luto. E não por acaso há uma grande movimentação da sociedade querendo também fazer compreender que não tem mais espaço para retrocessos, muito pelo contrário. Talvez tenhamos que buscar cada vez mais entender que o homem legisla, mas a natureza não assimila, e que ainda que tenhamos que reparar algumas coisas — afirmou.

O que são 'terrenos de marinha'?

A PEC das Praias trata dos chamados terrenos de marinha, que ficam nas praias e nas margens dos rios e lagoas, além dos espaços que contornam as ilhas com águas ligadas aos mares. Atualmente as áreas pertencem à União e a proposta pretende repassar a propriedade para estados e municípios de forma gratuita, abrindo ainda à possibilidade de repasse a ocupantes privados mediante pagamento.

A definição das áreas de marinha é hoje prevista pelo decreto-lei nº 9.760, de 1946, que criou a Linha do Preamar Média (LPM), tida como uma delimitação do fim da área marítima. Como parâmetro para definir até onde a água pode chegar, a regra usa como referência as marés máximas do ano de 1831. A partir daí, é contabilizada uma área de 33 metros do mar em direção ao continente, chamada de terrenos de marinha. Os locais não têm relação com a Marinha do Brasil.

Os imóveis construídos nesses terrenos têm escritura, mas os moradores são obrigados a pagar anualmente à União uma taxa de aforamento sobre o valor do terreno. No regime de aforamento, a propriedade do imóvel é compartilhada entre a União e um particular (cidadão ou empresa). Isso é dividido na proporção de 83% do valor do terreno para o cidadão e 17% para a União. Por conta dessa divisão, ocupantes destes imóveis pagam, atualmente, duas taxas para a União: o foro e o laudêmio.

Ambientalistas afirmam que o texto do novo projeto dá margem para a criação de praias privadas, além de promover riscos para a biodiversidade. Técnicos do governo também afirmam reservadamente que a PEC pode permitir privatização de praias. Hoje, são os terrenos de marinha que impedem, porém, o fechamento de praias para entes privados. Como essa faixa também pertence à União, não é possível fechar o local, assim como mangues, por exemplo. Com a extinção do terreno de marinha, o proprietário se torna o único dono do terreno. Dessa forma, é possível a ele fechar o acesso ao mar.

O relator da matéria é o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), favorável ao texto. Em seu parecer, ele aponta que a União até hoje não demarcou a totalidade dos terrenos de marinha e, ainda, que muitas casas são registradas em cartório, mas foram objeto de demarcação pela União, “surpreendendo os proprietários”.

“Não nos parece justo que o cidadão diligente, de boa-fé, que adquiriu imóvel devidamente registrado e, por vezes, localizado a algumas ruas de distância do mar, perca sua propriedade após vários anos em razão de um processo lento de demarcação. O fato é que o instituto terreno de marinha, da forma que atualmente é disciplinado pelo nosso ordenamento, causa inúmeras inseguranças jurídicas quanto à propriedade de edificações”, defendeu.

Após a audiência pública, ele foi alvo de críticas e chegou a afirmar que a acusação de privatização das áreas litorâneas se tratava de "fake news".

A última vez que a matéria foi discutida pela CCJ foi em agosto do ano passado. Na ocasião, o senador afirmou que “o último levantamento da Secretaria de Patrimônio da União estima que são 521 mil propriedades cadastradas em terrenos de marinha, fora aquelas que não são cadastradas”.

— Estima-se um impacto de dez milhões de brasileiros que hoje não têm segurança jurídica sobre a sua propriedade — disse Flávio.




Fonte: O GLOBO